As investigações da Polícia Federal sobre supostas irregularidades na compra de kits de robótica no governo Jair Bolsonaro (PL) mostram ligações com outro escândalo também com recursos do MEC (Ministério da Educação), este iniciado no governo Michel Temer (MDB).
As autoridades identificaram transações financeiras entre alvos das operações Hefesto, que apura o caso de robótica, e da Literatus, deflagrada em 2021 para apurar compras suspeitas de materiais escolares da ordem de R$ 154 milhões.
Os dois casos usaram recursos do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do MEC.
A apuração sobre o kit robótica foi suspensa por decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal). De caráter provisório, a determinação será submetida a julgamento da corte em agosto.
É citada na Literatus uma pessoa central no escândalo da robótica: o empresário Edmundo Catunda, sócio da Megalic, a fornecedora dos kits e pai do vereador por Maceió, João Catunda.
Os investigadores apontaram que a empresa GM Quality Comércio Ltda., do principal alvo da Literatus, Antônio Fernando Mendes da Silva Júnior, transferiu R$ 486 mil para a 3 JC Serviços Administrativos Eireli, firma de Catunda.
A mesma empresa de Catunda recebeu outro repasse, de R$ 48 mil, da Livraria Praça de Casa Forte Ltda EPP, em nome de um familiar de Silva Júnior.
A PF passou a investigar as compras de robótica após a Folha mostrar, em abril de 2022, que o governo Bolsonaro repassou R$ 26 milhões para sete cidades alagoanas adquirirem kits de robótica.
Os municípios tinham contratos com a empresa de Catunda, que é próximo ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Os recursos eram provenientes de emendas de relator, parte do orçamento controlada por Lira.
O nome de Catunda também é citado na Literatus por participar de uma licitação supostamente fraudada em benefício de Silva Junior na aquisição de kits escolares.
Procurado, Catunda não respondeu à reportagem. Em nota, a defesa de Antônio Fernando Mendes da Silva Júnior defendeu sua inocência. “A defesa […] refutou, por meio de farta documentação probatória, as suspeitas”, diz.
Os investigadores indicam que há “prova cabal” de que a política pública de transferências foi “direcionada para a contratação do grupo empresarial da Pontual Distribuidora Ltda”, de Silva Junior.
Empresas ligadas a ele ficaram com metade dos recursos de uma iniciativa do governo federal, em um montante de R$ 154 milhões, com direcionamento para cidades de Pernambuco. Isso teria ocorrido a partir de concorrências fraudulentas, cujos processos tiveram início em 2018.
As relações de Catunda com as empresas de Silva Júnior foram essenciais para que as apurações sobre os kits de robótica chegassem a um agora ex-funcionário do MEC chamado Alexsander Moreira
na pasta desde novembro de 2016, ele foi exonerado em junho após ser alvo da PF.
Catunda já representou uma empresa de Silva Junior, que, por sua vez, fez três depósitos que totalizaram R$ 10 mil para Moreira em maio de 2021, segundo as autoridades.
Houve movimentações suspeitas de R$ 737 mil de Moreira entre outubro de 2021 e novembro de 2022. Moreira tem ligações com a fornecedora de robôs da Megalic e com uma funcionária da empresa.
Moreira recebeu ao menos 14 vezes Catunda no MEC, entre 2020 e 2021. Também procurado, Moreira não respondeu à reportagem.
Nas duas investigações os recursos eram transferidos por meio de um mecanismo chamado PAR (Plano de Ações Articuladas). Também nos dois casos há transferências para que municípios façam compras com base em concorrências locais, supostamente fraudadas.
No MEC, Moreira trabalhava com o PAR. As linhas gerais do plano são definidas no ministério, mas a operacionalização de transferências é feita pelo FNDE.
No caso dos kits de robótica, o TCU (Tribunal de Contas da União) não identificou como foi incluído no PAR o valor de referência de R$ 176 mil para os equipamentos. O valor é o mesmo que consta nas licitações vencidas pela Megalic.
Foi Moreira quem defendeu essa inclusão em nota após o TCU questionar. Já na Literatus, Moreira é citado como autor de orientações para a chamada iniciativa 90 do PAR. Foi por essa iniciativa que os kits escolares foram comprados, com irregularidades.
Apesar de citados, Catunda e Moreira não constam como investigados na Literatus.
A iniciativa 90 do PAR, criada em agosto de 2018, consistia em oferecer recursos federais a municípios e estados para a compra de materiais didáticos visando melhorar o desempenho em avaliações.
Critérios foram ignorados, liberações de recursos, aceleradas, e prefeituras beneficiadas se cadastraram no MEC antes mesmo da divulgação da iniciativa, além de haver suspeitas de superfaturamento. Um dos itens comprados foi um curso prático de xadrez a um preço unitário de R$ 437.
Os investigadores da Literatus chegaram a dois ex-diretores do FNDE: José Fernando Uchôa Costa Neto e Leandro José Franco Damin Damy. Ambos chegaram ao cargo no início do governo Temer, quando o ministro da Educação era o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), e já saíram do órgão.
Damy era o responsável pela diretoria que efetivou os repasses. Questionado, disse que não cometeu irregularidades e que não era de sua atribuição definir quem receberia recursos.
Uchôa Costa Neto e sua defesa não responderam à Folha. Ele já foi dirigente do antigo DEM em Pernambuco e é próximo de Mendonça.
Além de relacionar decisões administrativas tomadas por ele, como uma nota técnica com tabela de preços, autoridades indicam que Uchôa Costa Neto teria relações próximas com parte dos suspeitos.
Em nota, o deputado e ex-ministro, que não é investigado, afirmou defender a conclusão da apuração. Com relação a Uchôa Costa Neto, afirmou que a presunção de inocência é um preceito constitucional.
Mendonça Filho ressaltou que deixou o MEC em abril de 2018 e que a iniciativa do PAR sob suspeita foi criada só depois, em agosto. “Não tenho qualquer responsabilidade sobre sua criação e operacionalização”.
O ex-ministro Rossieli Soares, responsável pela pasta quando a iniciativa foi criada (e, anteriormente, secretário de Educação Básica na gestão Mendonça), afirmou que a responsabilidade da execução é do FNDE.
“Qualquer iniciativa surge a partir de demanda dos municípios, seguindo critérios da Lei do PAR, cujo repasse é de responsabilidade do FNDE e a execução é dos municípios”, disse em nota. Ele não é citado nas investigações.
Tanto Rossieli quanto Mendonça dizem não ter relações com Moreira, o ex-funcionário do MEC alvo da PF. Não há informações de quem teria feito a indicação dele para o cargo.